Espelhar

Olho minha pele rabiscada no espelho um tanto sujo e percebo que me pareço cada vez menos com o que sou e mais com o que gostaria de ser.

Mas, veja, não quero soar otimista ou tolamente vislumbrante. Não é como se eu quisesse me afastar desse externo eu que é, eterna e infinitamente, eu. Na verdade, quase creio que me fora dada a chance de ocupar um pouco de mim com o que, de fato, sou. É como se meus pulsos cansados agora pudessem ser marcados com um tracejo de alma que berra minha essência, ainda que sórdida, ainda que amarga, ainda que desumanamente sem essência.

Olho-me no espelho intacto, mas vejo um corpo estilhaçado. Não de hoje. Por deus, os fragmentos são uma ferida velha. Mas o reflexo é de uma sombra um tanto mais distante de tudo que foi dilacerado. Mas repito, não é essencialmente uma forma de fugir do eu que veementemente será sempre meu. Ainda que pudesse livrar-me da pele fria, duvido que me seria dada a alforria das memórias cruas e fodidas. Então me resta habitar esse espaço corporal entre o caos e o fim. Entre o frenesi e o fenecer. Entre a flor que despetala e nunca morre.

Permito distanciar-me do que carrega o breu do existir e rumar ao fragmento de mim mesma. É como se assim, e tão somente assim, a cada estilhaço meu uma nova história possa ser recontada ainda que exatamente igual sem nunca, de fato, ser a mesma. Um milhão de vezes, se for preciso, mesmo que sem começo, mas também sem o fim de quem já morrera eternamente refletida mas sem ver-se no espelho.

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