Meus ombros pesados pesam menos do que ontem e, por isso, hoje eu gosto um pouco mais deles.

Gosto da linha curva que os tecidos assumem quando o corpo, cansado e mirrado, vai minguando sob os ossos. Ainda que numa enunciação meio fúnebre de quem não sabe bem o que diz – ou ainda pior, sabe o quão horrível o é dizer, mas ainda assim atreve-se a pronunciar -, eu gosto do peso escasso que as entranhas vão assumindo entre os dias. Os olhos turvos vão tendo dias de neblina interna. Em frente ao espelho, meus dedos contornam um osso que agora se sobressai. Isso me soa mórbido ao mesmo tempo que me dá um prazer assombroso.

Minha alma acumula um peso bem mais denso ainda que meu corpo pareça um pouco mais frágil sob meus ossos, minha essência está meio suja há alguns anos. Acho que meus fantasmas pesam tanto que esse amontoado de peso que vejo no espelho é reflexo das dores de alma. Será que dá pra esmiuçar-se tanto a ponto de sucumbir a si mesma? Ficar pequenininha, contornada em minhas costas magras, clavículas expostas, nos dedos longos que almejo ter?

Será que a alma pesa muito quando a gente pesa pouco?

maus cuidados e males amados

Hoje não teve poesia. Não teve ecoar. Não teve riso em fim de tarde.

Meu espelho foi estilhaçado num sem fim de fragmentos e era a sua imagem que estava nele. Tudo bem, os vidros todos começam a rachar com pequenas ranhuras. Entre m, a gente tem sete anos de azar, de amores mal amados.

Não teve poesia porque o silêncio quebrou meu eu em dezoito tons frios de inverno. Um vento sem direção me fez fechar os olhos e, quando por fim os abri, era eu e o todo sem você. Como a gente é tolo quando olha pelo espelho achando que é tudo continuação. Eu achei, pequena. Olhava por aquela moldura bonita achando que era um espaço tão grande e que caberia tanto de mim, em mim, por mim. Mas era só um vidro espelhado. E eu só via um reflexo de risos ternos e gestos afáveis e desejos mútuos. Nada, pequena. Não era nada. Era só uma parede sem espaço, um reflexo turvo, um me ver acreditando que era algo a mais. Não era.

Não havia espaço pra ver, pra ser. Mas como a gente deixa os tons sóbrios e malgrados e frios e crus enganarem-nos. Como deixe-me ver tudo e só aquilo que quis ver, e acreditei ver. Sequer as pequenas rachaduras, de início, me atentaram ao não espaço que tinha ali. Ao não estar. E quando, por fim o espelho se rachou, foi tanto estilhaçar, por tamanha a ranhura em mim, que você se quebrou como o movimento lento de ponteiro de relógio, e sórdido como um murro no espelho. Um reflexo desamado pelo próprio ato de amor. Um reflexo vago de quem só queria um silêncio mais junto. Me sentei por dias ali, quieta e vagante entre os males-me-quer da sua flor. Nenhum deles, mesmo mal, me quis. E sentada, diate teus e meus olhos, entre meu doar-me em essência, entre aceitar que tinha algo mais em ti que eu, e somente eu, queria acreditar, te vi se romper. Mentira. Você tá intacto. De corpo, alma, vísceras e desamor. Você tá intocável, indene, intacto. Você tá um todo você como eu jamais hei de saber ser. Eu que quebrei. Me estilhacei em feridas e riscos e dissabores. Me desfiz de um modo que nada me une, me enlaça de novo. Tô espalhada na porra do chão dessa sala. Tô pendendo entre a moldura e o vazio agudo. Tô somente eu.

sete tipos de amor que já não me cabem

Meu espelho sujo reflete um corpo fatigado. Uma essência escorrida de mim sujou o chão, manchou os móveis, esburacou meu peito. Meus olhos vermelhos cor de saudade. Meus choros contidos ocupam um espaço que antes carregava amor. Pedaços seus dentro de mim, memórias, histórias, a porra do seu perfume na minha roupa. Agora é vazio. É saudade. É um buraco imenso que não se ocupa, não se preenche. Todo o meu eu berra por retornos seus.

Passo os dias me enchendo de cafés amargos, cigarros já fumados, roupas suas esquecidas. Passo os dias me apegando ao que restou de ti, mas a verdade é que não sobrou porra nenhuma. Nada nessa casa ainda carrega a sua memória. Mentira. Eu carrego. Eu sou tudo o que sobrou de você aqui. Eu sou sua memória, sou a lembrança do teu perfume, o contorno da tua roupa, o tilintar do seu gracejo. Sou teu caminhar pela casa, sua pele fria, seu lamento em dias cinzas. Sou o pedaço que você não amou, não guardou, sou a parte de nós que você não viveu.

Por deus, sempre fui a parte de nós que não existiu. Fui a lembrança dos dias calmos, das noites quentes, do filme mudo. Fui o amor sôfrego, o pecado íntimo, a austera paixão solitária. Fui quem amou. Amei por mim e por ti. Por nós. Fui quem resolveu matar o amor também. Por só em quem ele nasceu haverá de ser esquecido.

Mas, por fim, esse espelho manchado reflete sete tipos de amor que já não me cabem. Ou mais. Pois amei cada tracejo seu e agora me restam lembranças amargas que já te fui parte do passado. Me restam amargas reticências que sou a parte do nós que não coube mais no vazio meu e teu.

Caos do eco

Fechei a janela. Num ato sutil, mas devastador, me fechei em mais um pano negro entre os olhos de quem não me vê. E, escuta minha pequena, se não pode suportar minha imagem, me deixa partir. Te peço, quase que numa súplica, que me permita desvincilhar-me destes dias frios. Deixa com que minha cama seja reconforto. Pois sua presença em mim constrói um buraco cada vez mais fundo, mais inatingivelmente sujo. E eu que me vejo nesse amor sórdido, triste, inócuo. Porque o amor é isso, um imenso egoísmo. E eu que te amo sem saber te partir. E você que me ama e me sufoca, me dói, me mata, me fere as entranhas. E você que tanto me guarda e, por isso, tanto me afasta. Menina, me deixa escorregar por entre seus braços, entre seus dedos, mas não permita que o egoísmo amante que o afeto te confere permita que tão somente você ame por nós. Pois sei, sei que manter qualquer ação amante torna-se viável apenas, e tão somente, quando de longe se ama, ou quando a proximidade repulsa o amor. A gente, soube, a gente sempre soube que permitir essas chegadas sem planos, esse querer mais do que poder, que permitir sermos mais do que uma tênue e distante admiração, terminaria enfim por nos destruir.

Você, presa na insanidade que o amor te confere, me mata numa ânsia de me proteger. Como se eu já não pudesse mais suportar – e sei que já não posso -, te imploro, me deixa sofrer de ausências. Me deixa recuperar o que resta desse eu vazio, incerto. Me deixa cair num cerne, âmago, num espaço oco de mim. Ainda que eu precise morrer de abstinência sua. Ainda que me doa, você me consome de um modo que me ausento em mim, no meu sufoco de ti, na exacerbação de tudo que me és, de tudo que me causa. Preciso voltar a me ter, ainda que isso seja menos do que nada. Ainda que o que restou desse podre eu seja uma ferida exposta, um sangue latente, seja um pedaço costurado com suas amarras.

E eu, presa no meu ato egoísta de não te ferir, me mantenho aqui. Egoistamente presente. Calada. Presa e constante nessa cena muda de um filme seu. Um filme onde só um egoísmo assente. Mas me mantenho, ainda que numa morte dolorosa, ainda que num sufocar-me, me mantenho pela dor que me causa te ferir. E te envolvo entre dedos e toques, entre a tez branca e a repulsa latente. Te prendo entre minhas amarras, te bordo em meus tecidos, e me torno só uma parede com suas manchas, com seus retratos. Não passo de um espelho manchado, um retrato mal feito. Não passo de um alguém que é exatamente por não saber mais o que ser. E sou. Sou uma repetição disso que não pode ferir o objeto amante. Isso que não pode desprezar o afeto que recebe. Sou esse eco que adere tudo que recebe, com medo do vazio, do silêncio, com medo de me tornar um eco de mim. Como se, num ato sagaz e fúnebre, a consciência de mim me assombrasse. Como se ser meu reflexo fosse por demais. Então preciso da sua cor, do seu tilintar. Preciso ter tão próximo o que me fere, se isso me afastar do que sou. E nessa sórdida consciência de que não posso suportar me ser, me envolvo nesse amor egoísta que me dilacera a alma. E ao aceitar me abandonar entre suas renúncias, te embalo, te admito, te enalteço. Me torno tão seu egoísmo cruel, esse quase-amor, quase pois você, na sua inconsistência malévola, no seu devaneio de amar, não vê que mais me fere, me suga, me mata. Não vê que acaba com o que resta de mim. Incapaz de abdicar de seu amor, pra me salvar, ainda que isso pareça me matar. Incapaz de entender que morro em mim, e morro em ti. O amor egoísta que me cerca e que dele já não sei pra onde ir. E nem se quero ir. E se quero – pois deveria querer -, não sei se posso.

Então me abandona, porra! Me parte ou me adentra, mas entenda que, ainda que todo ato de amar seja egoísta, o seu destrói toda a essência que alguma alma precisa pra viver. Entenda que, por mais que eu não me sirva, não me baste, que eu não saiba ser o que eu deveria, suas agulhas me sangram mais do que me bordam. E continuo a te pedir, ainda que numa controvérsia necessidade de me jogar aos seus pés, preciso me ocupar de mim, em mim, e tão somente pra mim. Preciso do meu egoísmo, ainda que nele não haja amor.