não soube temperar meus afetos

Quase nunca faço comidas elaboradas. Digo, havia um tempo, em que havia afeto, que cozinhar era uma grande empreitada de amor – não me olhe com essa cara de quem não me entende. Você sabe que vou fazendo pequenas coisas e assumindo demandas para transformar isso em comunicação de afeto. Então eu cozinhava. Claro, também porque era preciso comer, mas você deve saber o quanto esses afazeres alimentícios acabam comigo, doem feito uma faca que me corta os dedos.

Mas não era isso que eu ia contar. Dizia eu que nunca, ou quase nunca, faço grandes coisas em casa, pratos dignos de uma foto ou de serem apreciados. Eu vou me virando com uma salada e umas frutas, pão e ovo, às vezes me aventuro em uma pseudojanta, mas nunca tenho todos os ingredientes, nem todos os temperos, nem todas as panelas. Depois de um tempo, não soube mais temperar meus afetos.

Alguém colocou na nossa memória afetiva que cozinhar é amor, e que dá trabalho, e que pode ser um convite a mais para algo que deveria ser só um jantar mesmo. Deve ter sido aquele monte de filme brega da nossa infância. Olha, de novo eu tô divagando e me perdendo no assunto.

É que teve um tempo que eu quis inexoravelmente fazer um jantar. Era um retorno para alguém que expressou um bem-me-querer enorme, era um “não sei lhe dizer que lhe quero bem, mas, porra, quero demais”. Então eu comprei os ingredientes e temperos e louças bonitas e eu deixei lá esperando um alguém que não veio. Por duas ou três semanas, um corpo que jurou que viria, mas não cumpriu. Os ingredientes frescos foram gradualmente consumidos por mim e pela minha decepção – não na receita que tanto idealizei fazer, pois não ousaria acender o fogão se não fosse para quem prometi o jantar. Por fim, os ingredientes acabaram, e um sentimento de pequenez começou a brotar em mim.

Em poucos dias, a promessa veio novamente, e eu, afoita que sou, repeti a lista de compras, certa que dessa vez iria testar uma receita e que iríamos beber vinho enquanto eu explicaria minha inabilidade culinária. Mas, de novo, ninguém veio, e eu passei dias consumindo aquilo que era pra ser uma receita de afeto.

Não me olhe com essa cara de quem não sabe o que dizer. Por favor, você sabe que eu acredito em palavras, e se ouvisse mais cem vezes que “sim, sim, eu vou”, acreditaria e compraria tudo de novo, de novo e mais um sem fim de vezes.

Eu repeti essa cena patética até me esvair, até odiar o prato que nunca fiz e todos os ingredientes que nele deveriam estar. Eu acumulei compras repetidas no mercado e, ainda hoje, penso na receita que não fiz quando atravesso os mesmos malditos corredores. Imploro para que não me olhe com essa cara de quem quer dizer, mas não diz.

Eu posso lhe oferecer comida, talvez um queijo e alguns petiscos para acompanhar o vinho – e saiba que certamente ficarei afoita atrás do queijo que um dia, em qualquer conversa aleatória, você confessou preferir. Ou uma pizza vinda por aplicativo, ou qualquer outra coisa que irá me gerar intensa ansiedade e irá compilar muito afeto meu. Posso oferecer com todo afeto que há em mim qualquer coisa, desde que você diga, porque eu só funciono com palavras e frases inteiras.

Já que você não diz, digo eu: só não espere que eu vá fazer um jantar, ou almoço, ou organizar qualquer tipo de refeição, sou uma péssima cozinheira temperada com más lembranças.

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