destrancar

Tenho dormido com a porta do apartamento destrancada faz algum tempo. Fique tranquila, pois a região é segura, os vizinhos são conhecidos e ninguém desconfia que faço isso – logo eu que trancava a porta do banheiro para tomar banho mesmo morando sozinha.

É que, nos últimos tempos, tenho pensado o que aconteceria se, meio de repente, eu não acordasse. Olha só, isso não é um pré-aviso de suicídio, é só uma ansiedade, talvez fundada em razão, talvez beirando à neurose. Tenho me sentido mal nos últimos dias. Na verdade, meses. Não sei se ando bebendo demais e comendo mal ou se é esta demasiada tristeza que se instalou em meu peito.

Eu sei, sei que jurei cuidar desta materialidade corpórea, e correr no parque, e comer mais salada, e beber menos, e fumar menos, e pegar sol, e rir mais, mas a vida fodida e dolorida impede essas coisas humanas que fazem a gente, frágil que é, viver um pouco mais e um pouco melhor e.

Escuta, de novo, não quero que pense que é uma carta ou anúncio tristonho, pois se fosse você saberia, e todos saberiam. Não seria segredo. Eu só tenho andado meio cansada, com o ar pesado nos pulmões e uma preguiça de vida. Vontade ficar quietinha, aninhar-me no silêncio de casa e no caos de minha cabeça. Penso ser falta de vitamina. Minha alimentação está péssimas, e os últimos exames já não estavam bons. Às vezes, tenho um certo receio de ir dormir e não respirar mais, então penso que demorariam tempo demais para me achar, pois a porta estaria trancada e teriam que derrubá-la.

Neste apartamento caro demais para meu salário, certamente pensariam que era melhor esperar, ver se apareço ou dou notícias. Devo ter saído para alguma festa e volto em três dias. Talvez só quando o aluguel vencesse, quando há dias o porteiro não me visse, quando minha multa do condomínio já fosse maior do que o valor da porta estragada, só então eles viriam. Mas se a porta estivesse aberta desde o começo, quem sabe, achariam-me mais cedo – um corpo deitado na cama ou no sofá, quem sabe aninhado no canto da sala, na cadeira desconfortável, tentando respirar, tentando viver. Eu sei, beira à esquizofrenia, mas a solidão tem me comido a ponta dos dedos, então penso também que fica mais fácil não trancar a porta.

Acho que amanhã vou sai caminhar para ver se esse assombro diminui, pois, agora, verbalizando, parece tudo tão… tão sem sentido. Feito a vida. Isso, feito a vida e essa dor no peito, que não é infarto, é tristeza que pesa.

não soube temperar meus afetos

Quase nunca faço comidas elaboradas. Digo, havia um tempo, em que havia afeto, que cozinhar era uma grande empreitada de amor – não me olhe com essa cara de quem não me entende. Você sabe que vou fazendo pequenas coisas e assumindo demandas para transformar isso em comunicação de afeto. Então eu cozinhava. Claro, também porque era preciso comer, mas você deve saber o quanto esses afazeres alimentícios acabam comigo, doem feito uma faca que me corta os dedos.

Mas não era isso que eu ia contar. Dizia eu que nunca, ou quase nunca, faço grandes coisas em casa, pratos dignos de uma foto ou de serem apreciados. Eu vou me virando com uma salada e umas frutas, pão e ovo, às vezes me aventuro em uma pseudojanta, mas nunca tenho todos os ingredientes, nem todos os temperos, nem todas as panelas. Depois de um tempo, não soube mais temperar meus afetos.

Alguém colocou na nossa memória afetiva que cozinhar é amor, e que dá trabalho, e que pode ser um convite a mais para algo que deveria ser só um jantar mesmo. Deve ter sido aquele monte de filme brega da nossa infância. Olha, de novo eu tô divagando e me perdendo no assunto.

É que teve um tempo que eu quis inexoravelmente fazer um jantar. Era um retorno para alguém que expressou um bem-me-querer enorme, era um “não sei lhe dizer que lhe quero bem, mas, porra, quero demais”. Então eu comprei os ingredientes e temperos e louças bonitas e eu deixei lá esperando um alguém que não veio. Por duas ou três semanas, um corpo que jurou que viria, mas não cumpriu. Os ingredientes frescos foram gradualmente consumidos por mim e pela minha decepção – não na receita que tanto idealizei fazer, pois não ousaria acender o fogão se não fosse para quem prometi o jantar. Por fim, os ingredientes acabaram, e um sentimento de pequenez começou a brotar em mim.

Em poucos dias, a promessa veio novamente, e eu, afoita que sou, repeti a lista de compras, certa que dessa vez iria testar uma receita e que iríamos beber vinho enquanto eu explicaria minha inabilidade culinária. Mas, de novo, ninguém veio, e eu passei dias consumindo aquilo que era pra ser uma receita de afeto.

Não me olhe com essa cara de quem não sabe o que dizer. Por favor, você sabe que eu acredito em palavras, e se ouvisse mais cem vezes que “sim, sim, eu vou”, acreditaria e compraria tudo de novo, de novo e mais um sem fim de vezes.

Eu repeti essa cena patética até me esvair, até odiar o prato que nunca fiz e todos os ingredientes que nele deveriam estar. Eu acumulei compras repetidas no mercado e, ainda hoje, penso na receita que não fiz quando atravesso os mesmos malditos corredores. Imploro para que não me olhe com essa cara de quem quer dizer, mas não diz.

Eu posso lhe oferecer comida, talvez um queijo e alguns petiscos para acompanhar o vinho – e saiba que certamente ficarei afoita atrás do queijo que um dia, em qualquer conversa aleatória, você confessou preferir. Ou uma pizza vinda por aplicativo, ou qualquer outra coisa que irá me gerar intensa ansiedade e irá compilar muito afeto meu. Posso oferecer com todo afeto que há em mim qualquer coisa, desde que você diga, porque eu só funciono com palavras e frases inteiras.

Já que você não diz, digo eu: só não espere que eu vá fazer um jantar, ou almoço, ou organizar qualquer tipo de refeição, sou uma péssima cozinheira temperada com más lembranças.

Compridos e Frances Ha

É sexta-feira, e ontem você quase partiu meu coração. É tosco, eu sei. Mas também não chegou de fato a me ferir, porque não chegou de fato a ser afeto. É só isso que quase é, e quase vira algo, e quase neste mundo louco.

Agora, sexta, e todo amargor em meu peito meio insonso de ontem já se desfez. Não se iluda com a intensidade de meus sentimentos, porque se passei três horas fumando escorada na sacada depois que você saiu por aquela porta, e se eu não sabia disfarçar minha face decepcionada de um bem-te-querer sendo que nunca te quis nem por um segundo, confesso que levei apenas mais duas taças de vinho e uma música de Caetano para esquecer o abismo descomunal em meu peito. Olhei-me no espelho e dei risada por ser esse alguém capaz de sentir tanto e esquecer tão rápido. Não leve tão a sério o que escrevo, mas leve a sério menos ainda o que digo, sou uma personagem sórdida.


Agora, nesta sexta, engulo três comprimidos de frontal com goles de cerveja enquanto Frances Ha soa ao fundo com sua bela definição de amor.

Dois olhos as cruzando pela sala, sem ciúmes ou posse, apenas um amor limpo, por saberem que são amor, tão somente amor. É a gente que, assim como Frances, acredita nesse afeto, é não relacionável, totalmente não amável. A gente só senta na beirada da janela pra tragar um cigarro, beber um vinho, viajar sem dinheiro. Ninguém cruza o olhar pela sala para achar o nosso, porque é sempre por ciúmes ou posse, e eu não sei lidar com com afetos que não sejam puramente amor. Por isso acendo um cigarro, enfio mais um frontal na garganta e viro meio garrafa de cerveja.

Faz seis noites que não durmo direito, é por isso que agora são onze da noite, France Ha rodopia em minha frente e eu enfio minha unhas na pele de minhas mãos. Eu não me basto e não há ninguém mais, o amor não basta, Frances não basta e o frontal também não.

despetalar

O amor morre no despetalar de uma rosa arrancada da terra. E segue morrendo por dias sem fim, até que vira tédio, suspiro, incômodo, cansaço. Então morre de vez. 

Às vezes, o conforto faz dois corpos permanecerem segurando as últimas pétalas no miolo apodrecido da pobre flor. Às vezes, o descuido de não saber que o amor também fenece faz um dos corpos persistir num costurar sem fim as pétalas na flor murcha. 

Mas, então, num passeio ou caminhada quaisquer, perguntam cadê aquilo que se ama, e num despertar solene, damo-nos conta que a rua toda é vazia, que nossas mãos estão vazias, e nossos bolsos, e nosso afeto. Olha que loucura, que desatino infame ouso dizer: às vezes é preciso soterrar-se numa pergunta de gente desconhecida pra dar-se conta que o amor escoou pela porta entreaberta.

Fim.

E depois? Depois vem meses de caos e silêncio. Um silêncio mentiroso, árduo, sórdido. Um silêncio que ecoa e, de tão vazio, produz um assobio dolorido. Depois, a dor reduz, o vazio reduz, o breu reduz. Um tempo depois, o afeto ressurge, porque isso, por mais não poético que seja, é extremamente humano. A gente há de se afetuar de novo quando menos se espera, na fila da padaria, às 7 da manhã, correndo no parque, dançando bêbada numa festa que a gente jurou não ir. Há de se esbarrar no amor, quase num tropeço.

E se sabe que é amor quando, entre um fala sem sentido e um riso meio frouxo, ouve-se que não é o dia, não é a hora, que não se está buscando um amor, que se saiu há pouco de um relacionamento. Mas, porra, como é que se busca amor?

Ele apenas aparece, num piscar distraído às 19h esperando o elevador. Porque amor é isso, ele exaure o corpo e a alma, e num próximo afeto que a gente recusa porque cansou, perde a chance de um riso calmo, uma tarde preguiçosa, uma noite animada, um almoço esquisito só porque a gente ensimesmou que o amor é isso que prende, que dói e que só dá para aceitar quando a gente estiver procurando. Só que aí, aí eu lhe digo, a gente não acha. Tem que estar distraída. E pronta pra ouvir que “eu não tô procurando um amor”. 

Tudo bem, eu poderia dizer que não, eu também não tô, mas é preciso ser muito distraída para não notar que se esbarrou no afeto ou no desejo alheio ou que ele esbarrou em você. Sempre se sabe, e por saber, dói. E por doer, sangra. E como sangra, todo mundo vê. Porque o afeto é sempre uma dúvida e uma insegurança. O não amor é certeza. Alimentar o afeto é agarrar-se na incerteza se receber algo de volta. É o medo de acordar um dia com a cama vazia, é ceder ao receio de deixar doer, porque vai doer pra caralho quando um dos dois arrancar as pétalas mortas. O não amor é seguro, não deixa dúvidas que todo “bom te ver, até a próxima ” pode ser um nunca mais.

Eu sei que você não tá procurando nada. Eu também não, mas às vezes se esbarra na coisa, no afeto, nisso de não poder tocar. Não tocar porque o afeto faz um barulho desgraçado, e se ouso chegar perto, você vai ouvir que me aproximei mesmo depois de me dizer que “não, eu não tô procurando”. Eu também não tô , porque amor não se procura, mas eu sempre presto atenção quando alguém esbarra em mim.

hoje não tem ficção

O dia acaba, mas parece que nunca começou. De tempos em tempos, estas datas clichês se repetem, mas agora eu não sou mais a mesma. Você também não é.

E eu te ligaria agorinha para perguntar como tem sido o dia de hoje, como você tem lidado com essas horas arrastadas e com esse tiquetaquear do ponteiro do relógio que demora um sem fim de voltas para completar um minuto. É que hoje eu tô vivendo sozinha esta porra de data pela primeira vez, e você também.

Eu juro que ligaria, mesmo odiando ligações, mesmo sem saber o que falar, mesmo que você atendesse segura e eu não conseguisse dizer uma única palavra. Eu ligaria, só para ter de volta essa sensação familiar de quem passou por muitos dias como hoje – e ainda que num caos, sobreviveu a eles. Os dias pareciam mais fáceis quando havia companhia. Eu sei, sei que não é meu direito ligar e pedir socorro, mas é humano, não é?

Sinto falta desse podre jeito de ser humano, jeito falho de ver a vida. E peço desculpas se te incomodei, se fiz teu dia doer ou se apenas fui um número estranho ligando no meio do dia. Você não atenderia, se bem te conheço ainda. Tudo bem, pois meu antigo eu não ligaria, só que eu sou um eu perdido, um novo ser que nada é.

Sinto falta de poder ser mais humana, coisa que só dois corpos em plena sintonia caótica podem ser. Mas ninguém mais é, nem eu, nem você, se é que um dia fomos.

Eu acho que você me escreveria, se ainda fosse um passado, ou hoje mesmo pensou em mim e quase rabiscou um papel em branco. Mas eu não te conheço mais, e não me conheço, só sei que aquela dor de antes ainda dói. Quem sabe eu não me perdi tanto assim. Mas eu juro, ligaria e deixaria dois ou três toques ecoarem em meus ouvidos, e pensaria que foi o maior erro ligar ou não saber viver os dias com você. Mas eu não ligo, pois em mim é dor e ausência. Ausência de mim, e ninguém no mundo me conhece melhor do que você, nem eu mesma. Apesar de eu te confessar, no mais sórdido sussurro, que sou uma fraude, uma personagem, uma invenção de mim mesma que não se sustentou. Você conhece a mais completa ficção que já vivi.

Eu queria uma carta, de amor ou de dor, ainda que não haja amor, ainda que escrever sobre do, agora, seria feito uma lança cega me atravessando o peito, ou ainda que ler uma cara sua seria sobre uma lança cega me rasgando a alma. Então não tem carta, nem amor, nem eu, nem você, nem ninguém.

Hoje, só por hoje, eu me deixo inexistir. Não vou fazer nenhuma invenção de mim mesma, não vou construir esse eu que não sou, esse eu que tentei ser, esse eu que não cabe em mim. Hoje, só hoje, eu ligaria para perguntar quem fui, porque não me cabe mais existir.

1:39 de filme e eu preciso de um neuropsicoterapeuta

No meio do filme me deu uma tristeza danada. Não, não que eu já não estivesse enfadonhamente deprimida. Esta semana tem sido um inferno. Este mês todo, na verdade. Esta vida de merda. Pode até ser que os últimos meses parecessem menos piores, mas não, a vida é um amontoado de caos, mas deixe-me voltar: no meio do filme me perdi na narrativa e divaguei sobre minha vida. Naquele momento, como se diz? isso! tive uma epifania. Quis um neuroquímico. Não, um psiquiatra. Melhor, um terapeuta e neuropsiquiatra, tudo junto. Ele entenderia. Ou não.

Nem eu entendo… porque eu diria que já quis morrer uma centena de vezes, mais do que já quis viver. Muitas mais vezes. Já tentei, sem sucesso, obviamente, senão não estaria narrando tolamente este sem fim de caos. Já misturei remédios e bebidas, inalei gás e cortei o pulso. Planejei pular de janelas, me jogar na frente de carros e de trens, amarrar cordas no pescoço. Também nunca confessei nenhuma dessas coisas. Foi sempre sórdido demais dizer com todas as letras, dizer fora de licença poética, dizer que morrer era de fato dor e não literatura.

Eu acho que por muito tempo não tive uma única molécula de serotonina em meu corpo. Eu sei, sei que biológica e neuroquimicamente isso não é possível. Mas eu só tô divagando, porque quase posso crer que foi assim durante anos. Se o neuroquímico e psiquiatra me atendesse, se falasse agora comigo, ele riria de mim, mas me medicaria. Na verdade, aumentaria as doses. Há de ter doses maiores que não me intoxiquem. Não existia, sabe, no passado, não existia nenhuma reação química possível no meu cérebro, nenhum sopro de vida. Era de uma tristeza tão imensa, tão extensa e inefável, que era pior do que não existir. Uma dor que me consumiu a um ponto de nunca mais me permitir a cura. Foi pior do que morrer, pois sou obrigada a carregar a ferida aberta e em eterna decomposição. 

Agora, sinto que não sei me recompor, sinto que sigo morrendo ou querendo terminar de me matar, mesmo quando quero viver. Se quero sentir algo, ainda que bom, não entendo o limite. Confuso, não é? Explico-lhe: se saio dançar, sinto um medo desgraçado de perder algo, e meu corpo é consumido pelo receio, então a ansiedade me toma fisicamente. Ainda que a exaustão me consuma, só consigo parar de dançar quando a última pessoa sai e a última música acaba. Se faço um exercício, sinto que posso quebrar um braço, pois preciso segurar o maior peso para sentir que vale o esforço. E, claramente, tem sido assim com a comida. Por anos, por todos estes malditos anos, dia após dia, morrer de fome ou de exagero, sentir os extremos, o controle ou a perda dele, confessar em poesia o que mal digo em terapia. Cansar de ser quem se é. Cansar de ser. Cansar.

Se eu tivesse um neuro.psico.terapeuta, ele me entenderia. Suponho, ou quero crer. Quero ao menos crer que me medicaria. Saberia ele de um remédio que iria equilibrar estes anos de ausência absoluta de serotonina e necessidade explodir meu corpo de sentir.

Eu queria viver em paz, mas como não sei se é possível, hoje eu quero morrer. Naquele cinema, eu chorei tão silenciosamente, e tão sordidamente, que quase morri. Hoje, queria morrer, mas estou triste demais parar pular da janela ou ligar o gás.

Por vezes, a ansiedade da alegria me aflige, e me dá uma tristeza imensa pensar que vou morrer de aflição, seja pelo caos de nunca estar em paz em mim mesma, seja pelo desespero de nunca estar feliz. O meio termo nunca vem. Nunca vem. Eu não queria escrever poesia, só queria ver o filme.

quadro de colecionar dores

Joguei mais uma tampinha de cerveja naqueles quadros cafonas de acumular tampinhas e rolhas. Aos poucos, ele vai se enchendo, tampa por tampa. O lado do vinho se encheu rápido e já não cabe mais nenhuma.

Proporcionalmente, claro, há bem menos rolhas do que tampinhas. Estas, pequenas e barulhentas, demoram a preencher o espaço. Por vezes, sinto-me assim, precisando urgentemente ocupar os vazios, mas nada em mim parece bastar. Em outros momentos, sou o lado da rolha, forçando-me naquele desconforto e sem mobilidade.

Mas olha, não era isso, não era nada disso que eu ia dizer. Joguei mais uma tampinha lá dentro depois de muitos dias. Hoje, depois de muitos vinhos, abri uma cerveja e acolhi as dores de um semi-conhecido. Essas coisas que a gente faz quando o caos de dentro parece ser menor do que o caos alheio. Ou quando a gente sente que precisa ser um ponto de afago. Ou quando tudo dói tanto por dentro, que só resta guardar a dor no bolso e segurar um pouco o corpo alheio.

Eu sei, eu sei. Jurei não acolher intensamente mais estes corpos de pouca entrega, mas ele, tão mirrado e visualmente abalado, atiçou-me um afeto que eu já nem sabia mais existir. Não existia. Não com aquele corpo, mas foi assim, do nada, de rompante, que precisei muito lhe tocar a tez clara, coçar seu cabelo bagunçado e sentir sua cabeça tola repousar em meu peito.

Não tem afeto nos dias da semana e quase nenhum diálogo, mas juro que houve tamanha afeição por aquela alma, que parecia carregar um cansaço maior que o corpo todo, que não pude fazer nada mais além de guardar minhas toscas preocupações sobre a luz acesa em casa, sobre o despertador de amanhã, sobre a conta do cartão, sobre a saúde que não vai bem. Só pude silenciar minha mente e abraçar, como se houvesse um afeto sem fim, aquele corpo delgado. Cinco ou trinta minutos, eu não sei. Mas juro que senti ser capaz de afagar algum corpo outra vez, senti ser capaz de ter afeto e calmaria de novo. De novo. De novo, até precisar ir embora. Até notar que nenhum arrepio doce na pele acolhe tanto a ponto de impedir o elevador de chegar.

Mas olha, fica bem – é o que sempre digo. Nada em mim nunca fica bem, mas eu repito isso para os outros. Vai ficar – enquanto entro no elevador, enquanto enfio as mãos no bolso e olho pra tudo que está quebrado em mim. Vai ficar. Por isso, só por esse afeto que ressurgiu hoje, abri uma cerveja: senti meu corpo ocupar um pouco mais o espaço, feito uma tampinha que se perde entre as outras, mas dá um pequeno volume a mais. Um pequeno eu perdido em meus bolsos.

sobre o que não quero

Você me era feito uma noite normal. Normal. Sem grandes aventuras pelo mundo, uma noite que me instigava, desafiava, prometia, mas não cumpria. Entregava boas histórias, risadas frouxas, um par de olhos que se cruzam e se estabilizam. O mundo, por deus, tem me entregado boas aventuras. Mas você, você… sossegado, num ritmo de boa cerveja e música baixa, prometia-me boas noites, e bos dias, e boas tardes. Faz dias, semanas ou meses. Eu parei de contar, porque o tempo não me curou. E eu te guardei sorrateiro em meu peito.

Você me dói quando ouço aquela bandinha que eu nem sabia gostar. Mas não te guardo como um afeto mal vivido, mal superado, mal tragado. Guardo-te, na verdade, como um momento de paz que me permiti, e que você me rompeu. Eu sei, parece uma fala sem sentido, mas antes era um caos, depois veio também um caos, e eu continuo a escrever textos sobre você, você que não é o foco, mas eu também não sou. Mas é sobre um você que não vivi, por isso, escrevo para inventar essa lacuna que, vez ou outra, reverbera.

O mal da escritora é precisar de inspiração, e eu tão sórdida me inspiro no afeto. Quando quis me afetuar, não soube. Agora vou vivendo de corpo em corpo, e você também, provavelmente. Mentira, sequer sei. Talvez esteja num amor desses sem fim. Sem fim de cinema à tarde. Cinema este que nunca fomos. Sem fim destes clichês que dizem ser amor. Mas não é, juro, ressentimento. É uma fagulha que ficou e que podeira ter sido. Sempre penso na vida que poderia ter sido. Não fomos. Vou sendo com outras almas e outros corpos, e vivendo coisas que provavelmente não viveríamos. Eu costumava rir da nossa rotina de noites de sábado e dias de domingo.

Eu sigo escrevendo sobre o que não existe, inventando personagens. Eu não sei me acostumar com essa ausência de afeto. Mas também não sei me afetuar. Esse ambiente me corrói e me dilacera. Não vou te confessar saudade, mas vou viver suas ausências. Este não é o melhor texto sobre amor, porque não é sobre amor, é sobre você. Que me falta, mas eu não quero que volte.

Uma mancha no espelho

E se eu olho para o espelho, agora, agorinha mesmo, não me reconheço. Juro, pequena. Como posso repousar os olhos no reflexo deste corpo e não fazer ideia de quem sou? 

Eu me inventei – duas, três, cem vezes nos últimos meses. E me desfiz, puxei as pontas, desfiz cada nó até sobrar um amontoado de linha. Eu me amontoei e me deixe no canto da sala, no canto da minha alma. Se é que tenho alguma.

Sabe, você sabe que eu sou mais matéria do que essência almática. Odeio essa coisa toda de energia, e incenso, e universo conspirando, e signo! Quer coisa mais risível do que horóscopo? Mas eu pergunto “áries, e o seu?”, porque eu sou uma encenação de mim mesma. Invento-me para caber nos espaços, que por vezes são estreitos e sufocantes. Odeio os exageros, odeio sentir que ocupo mais do que deveria, odeio que me roubem o pouco espaço que tenho.Você, que me conhece tão bem, não tem a menor ideia de quem eu sou.

Eu também não tenho. Minto para mim mesma, pois preciso ser uma versão para cada ser com quem divido espaço. Eu divido muito espaço comigo, por isso acho que sou minha maior invenção. Ninguém me desconhece mais do que o meu próprio eu, afinal, conheço todas estas inventadas e mal ensaiadas personagens. Sou uma farsa.Mas eu tenho trabalhado isso, de ser um vazio vagando torpe e cheio de mentiras.

Não sei se falei tudo que queria ou que deveria, mas sei que, no momento da fala, verbalizei tudo que podia e conseguia. Tenho tentado falar para mim mesma também – eu e meus tantos eus. Sei bem que parece uma piada de internet: eu e as vozes da minha cabeça. Mas você já me viu ser tantas que deve concordar. Não me reconheço neste espelho meio sujo, apesar de que, até ontem, tinha certeza que era eu, porque se tocasse meu nariz, o reflexo tocaria o dele também.

Agora já não sei, desconfio que seja um outro alguém muito bem ensaiado com meu caos. Estou aqui olhando fixamente, com os olhos semicerrados, pronta pra captar um deslize, uma respiração desalinhada, um piscar de olhos que entregue a mentira desta cena. Estou pronta para desvelar-me, denunciar-me. Estou pronta para gritar para o mundo esta fraude que sou e a que pareço ser. Isso! Veja, menina, o caos que me situei: sou a mentira de mim mesma, e meu reflexo é também uma mentira, e este corpo é, e este nariz tocado pela minha mão é também, e este espelho, e este. Será que alguém acredita se eu contar?

de meias nos pés e calçados nas mãos

Eu deveria ter ido embora quando o silêncio pareceu desconfortável, deveria ter saído pela sua porta e deixado que o tempo levasse mais facilmente o que sobrou de você em mim. E antes mesmo do elevador fechar, ainda no seu andar, eu voltaria para pedir que nunca me deixasse ir. Mesmo que na época eu sequer soubesse se um dia cheguei. Hoje tenho quase certeza que não.

Agora tudo parece mais calmo, ainda que soe como uma tristeza profunda. Como uma ferida no joelho que cicatrizou e já não dói, mas gera um misto de lembranças pontiagudas. Eu deveria ter voltado assim que o elevador abriu lá embaixo. Mas agora não importa, porque não voltei e não fiquei e não insisti. Eu não subi as escadas pelo medo do ridículo, e você não me olhou pela janela. Pareceu tudo tão tosco, frio e confuso que ir embora foi a única opção.

É isso, sabe? Para você, tão confusa e presa numa lógica só sua, a vida era um silêncio desajustado. Ainda que estrondosa, você não deixava marcas em minha casa. Assim que saía, parecia nunca ter vindo. Já eu, inebriados, esquecia-me em suas roupas, vestia seus braços, colava-me às suas paredes, mesmo sem estar, sem nunca ter estado. E agora você é cicatriz que, vez ou outra, ressurge em minha memória. Ressurgiu hoje.

Deveria ter calçado os sapatos e saído silenciosamente, porque não queria lhe acordar. Deveria ter ido embora, sobretudo porque eu me acolhia na paz de lhe ver dormir e isso me causava um medo danado de ser unilateral. Logo eu que saio apressada da cama dizendo que preciso ir embora – Foi ótimo, ótimo – costumo dizer, barulhenta, que é pro corpo e alma ali ao lado me sentir partir. E nunca mais. Pego minhas coisas, bato a porta, desço de meia nos pés e calçado nas mãos. Eu que falo com o porteiro e nunca mais.

Você iria rir da minha cara, nem deve acreditar que sou assim, pois nunca levantei arrependida e apressada de sua cama. Essa, exatamente essa cama, que me viu ficar mais cinco minutos, me viu voltar, me viu aninhar-me nisso tudo que não pedi pra ficar, não pedi pra me deixar ficar.

Eu conto de um jeito torto e sem nexo, agora, com as meias nos pés e os calçados nas mãos, batendo a porta e dizendo que, sim, foi ótimo, foi, mas tenho que ir. Com um certo aperto no peito de pensar que nunca mais vou querer ficar nem um minuto a mais depois de o sol nascer, com receio de seguir descendo apressada pra nunca mais. Com uma fresta que não se fecha por não saber por que ficava em sua cama, nem por que nunca saí silenciosamente de seu quarto, menos ainda por que não voltei antes de a porta fechar. Eu conto isso olhando a cicatriz no meu joelho, que não dói, mas às vezes sangra.