Um cerne, um caco, um ego, um afago

Decidiu que era hora de parar de escrever. Sim, pois sentava-se em seus lamentos e preenchia cartas sem fim para mil conhecidos. Decidiu que era a última vez que tomava uma caneta em suas mãos e que, caprichosamente, desenhava caligrafias em suas folhas. E num misto de despedida e necessidade de explicar, contornou seus dedos com a caneta. Regeu uma sinfonia de sentimentos escritos. Pela última vez se encheu da necessidade de esvaziar-se, então escreveu.

E pra quem destina-se sua última, mais tênue e avassaladora escrita? Suas linhas retas de sentimentos tortos vão aos olhos de quem? – E meus personagens que me são tão vivos e eu que me tomo em escritas, vagueio em frases semi-mortas, socorro-me em angústias que borram, sim, borram o papel. Pra quem escrevo? – Num misto de dúvida e certeza, escreveu. Ainda que, a princípio, sem destino certo, sabia em seu âmago quem deveria ler.

Ah, suas linhas pesadas encheram-se e dessa vez não tinha personagem. Amigos velhos, os bons ouvintes, as mágoas, os amores arremessados no mar do coração, a família, os doentes, os podres, pobres, fracos, corajosos, os inimigos, os famintos de amor, os solitários, os mudos cegos e adormecidos, os alegres, os hipocondríacos, desesperados e alucinados, os loucos neuróticos, esquizofrênicos e os de bom coração. Dezenas deles. É pra eles que sempre destinavam-se suas cartas. Agora é pra todos. Todos que sempre foram ele. Ao amigo sufocado pelo amor desamado, pois o coração de quem escreve está sendo destroçado pelo sofrer palpitante da paixão. À mãe estrondosa que afoga suas necessidades na agressão, pois os dedos de quem escreve estão marcados pela caneta apertada, pelo metal contra a fina pele, que faz sangrar. Ao filho desatento, amargurado, inexpressivo, pois quem escreve quer desapegar-se de um afeto sórdido, um quase desafeto, pois o fere, o clama, o protege até a segurança romper-lhe o peito e roubar-lhe o ar.

A todos os conhecidos, seus personagens. Às características das invenções, toda sua angústia. À criação fictícia, todo seu lamento. Nada é falso, mas nada é real. A todos os destinatários, um pedaço do autor e da autoria. Um cerne, um caco, um ego, um afago: uma renúncia de si, uma denúncia do ser. A última carta dependurada no espelho: se suas mãos ainda puderem escrever amanhã, ele a lerá como um velho conhecido de si mesmo. Se nada mais acordar, ele terá a carta refletindo tudo que ele foi: um drama ficcional.

Abajur

Antes de você dormir, apague as luzes. Meu bem, eu apagaria seu abajur por toda uma vida. Repousa teu peito no meu e me faz a certeza de que amanhã ainda vem.

Nenhuma fuga tá me bastando, meus cafés não amargam mais, meus cigarros queimaram todas as mangas de minhas jaquetas. Essa noite não teve Janis rouca me trazendo uma tristeza nostálgica, não teve cerveja quente me subindo à cabeça, nem foram as drogas, incensos ou mantras que me jogaram mais fundo em mim. Foi essa porra de consciência de ser e estar exatamente aqui sendo o que sou. Esse nada mais.

E se eu escrevesse uma carta hoje, seria com a tinta fosca do meu medo. Mas não é minha última carta, minha pequena. Não são essas as letras que me restam.

Entre as casas vazias e as dores mal digeridas, me dei conta de estar dançando num breu interno e que sequer tenho força pra morrer. Não hoje. E olhe, minha pequena, me bastaria fechar os olhos.

Se repouso nesse exato instante, suspiro pra nunca mais. Mas me exige tanto, tanto que nem ouso fechar os olhos e deixar essa dor vagando por aí.

Quase.minha.quase

Respiro baixinho só pelo que me resta de mim. Não sobrou muita coisa, mas se você baixar as luzes e me olhar com cuidado, dá pra ver o que me feriu.

Minhas salas vazias

Sinto o choro subir feito um fogo em meu peito. Tudo dói e não quero e não posso e não sei mais suportar essa dor.

Já chorou com seu peito contorcendo sob você? Já chorou impulsionada pela ânsia de não querer mais parar e que, por deus, se houver alguma piedade de você, que ela te sufoque?

Meus braços doem e sinto minhas vísceras desejarem o fim. Há tempo não sei mais o sossego, há dias minha paz queimou e não restou vontade viver.

Eu tô sentada no chão da minha sala vazia, to sendo um corpo vazio, uma porra de alma vazia que não suporta mais ser.

Eu tô debruçada num vazio tão agudo de mim que cigarro ou bebida amarga, filme ou desespero algum jamais soube delinear.

Eu tô me afogando nas poucas lembranças boas que tenho. E invés delas me darem paz pra continuar, me pisam sem dó. Morri por dentro e nenhuma das minhas lágrimas secas vai me fazer persistir depois desse fim.

Na minha sala vazia, um corpo caído. No meu corpo vazio, não restou eco de alma.