Mal estar

E no meio de uma tarde de sábado eu me dei conta – por deus, gostei tanto de você. Gostei mesmo. De corpo e essência. Quase digo que valeu o esforço, valeu a dor, quase digo que te fui amor.

Quase porque sinto que estive mais nisso tudo do que você percebeu, do que você quis e esteve. Quase porque me abri num invadir-me de sentimentos que sequer sabia sentir. E você? Você não me convidou a te adentrar. Não me ligou em meio aos das chuvosos e sequer me garantiu a paz que eu saberia, por deus, eu saberia te dar!

Eu correria cidades inteiras pra te tomar entre toques. Quase senti isso. Quase senti que você me tocaria. Menos quando você emudeceu. Menos quando você assentiu e não me deu calmaria. Menos quando você deixou que minhas fantasias se somassem às expectativas e fossem derrubadas pelas decepções.

Eu quase abracei a certeza de que seria você. Porque é. É seu jeito de rir de soslaio. Seu jeito de enrubescer. São seus olhos que me seguem e me perdem. Seu jeito de me ter que nem eu posso lidar. Mas, mesmo que encantadoramente surrupiada por você, o amor é um caminho duplo. E junto com o caos do querer-te, preciso da certeza de te ter aqui também. E esse estar em mim é um ato falho. Um não chegar contínuo. Quase estar. Mal estar. Um quase que me desassossega. Que me engasga. Que quase me engole.

Mas, por deus, eu teria gostado tanto de você.

Ainda que mudo, todo meu eu berra-te amor

Hoje eu acordei mais tarde. O sono foi tenro, a noite foi longa, o levantar foi penoso. Mas acalme-se, não venho de lamúrias e derradeiras reclamações. Venho te dizer que hoje, apesar da noite péssima, foi um dia mais leve. Não, por deus, não que você não me tenha pesado os bolsos, os pulsos. Não que você não tenha estado presente na memória, e sequer por um segundo eu deixei de sentir o vazio em mim. Não. Mas hoje eu sofri diferente. Sofri sabendo que a dor é parte integral do processo, que sentir as ausências latentes são cicatrizações necessárias, assim como a gente sente a presença pungente no início de um amor.

Hoje, menina, quando tu me ligastes, eu não movi mundos pra te ver. Não que eu não quisesse ou não pudesse, como tantas vezes fiz. Sequer te digo que não passei horas ao lado do telefone à espera de sua ligação, me corroendo em abandonos ao perpetuar o silêncio do aparelho. Você demorou a ligar. Ainda não aprendi a caminhar leve como caminhara dias antes de te conhecer. Mas aos poucos fui me bordando esse sentimento de que, não sei ao certo, você não moverá mundos por mim.

Ah, minha pequena. Eu poderia continuar. Mas isso me fere tanto que tracejo lágrimas de amor às nossas páginas.

Eu fui evitando prender-me. E, mais do que isso, evitei querer-me presa. Mas te aceitei. E não te culpo. Você nega o amor porque aceitá-lo é abrir mão de uma solidão segura, de uma calmaria tácita. Aceitar a invasão alheia é, antes de mais nada, aceitar abandonar-se. Viver em um outro corpo que não o seu. E não ter absolutamente algum controle sobre isso.

Mas não te recebo mais porque sua presença me fere pelas chegadas suas que não ocorrem. Não te recebo porque abri mão dos meus medos e receios e decidi, por deus, eu decidi que me abandonaria por ti. Mas você ainda não. Talvez medo, talvez insegurança. Talvez seu tempo não esteja ao ritmo do meu, mas não posso, pequena, me permitir esse entrelaçar de mãos sem a garantia de que você vai se entrelaçar em mim.

Eu sei, e só eu sei o quanto corri e evitei esse sentimento de me doar, de me doer aos corações alheios. Mas alguma coisa em você refletiu e culminou uma vontade descomunal de me fazer rima em seus tilintares. Por isso, pequena, te digo não ser capaz mais de lidar com suas fugas, por mais que tente. E como tenho tentado!

Amanhã talvez volte a me ferir como antes. Amanhã, quem sabe, eu acorde morrendo um pouco mais, chorando pedaços meus e ausências tuas. Mas hoje eu me permiti entender que é parte do curativo se deixar sentir. Sentir e não cobrar-se pela dor. Pelo doer. Pelo amar. Pois ainda que mudo, todo meu eu berra-te amor.

Me queira bem, ainda que longe

De repente ficou estranhamento desconfortável ser quem sou. Como uma blusa apertada, não estou me servindo. Eu que há poucos dias estive tão no meu tamanho, e também no seu. Vesti a mim e a ti, vesti ao meu afeto, ao meu encanto. Aliás, me recobri de ensejos, desejos, me vesti de uma paz danada de me ser. E de nos ser.

Mas agora me resta essa agonia que não sei esconder. Essa bagunça que não consigo empurrar pra dentro do guarda roupas. Me restam essas peças desajustadas, amassadas. Peças que não sei vestir e não sei abandonar. Como quem arruma o quarto mas guarda as velhas roupas numa nostalgia amargurada, na esperança de que um dia voltem a servir. Mas não servirão. Porra, nunca mais deveríamos tentar vestir uma peça que nos caiu tão docemente ao corpo, mas virou aperto, desconforto.

E se eu pudesse te dizer qualquer coisa, coisa pouca que fosse, diria que tentei. Por deus, tentei ser qualquer coisa que te fizesse sorrir nas manhãs amargas, ter paz nas tardes longas, eu sei quanto quis ser o último boa noite seu. Mas os caminhos foram cruéis e me resta te dizer que te quero bem, pequena. Te quero feliz, doce, te quero. Então tô te emanando boas coisas. Mesmo morrendo de suas ausências, mesmo que ainda aprendendo a respirar sem seu perfume no ar, tô te desejando um sem fim de coisas boas. Deseja pra mim também. Me queira bem, ainda que longe. Porque dói, ainda me dilacera, me fere, me escancara a solidão. Mas eu vou ficar bem. Vou ficar aqui, e se lembrar, se quiser, se puder, me manda paz, pequena. Tô aprendendo a te amar em calmaria.

Pedaços de um caderno sem amor

Te entrego uma carta borrada, rasurada e suja. Te entrego pedaços de um caderno sem amor. Mentira. Um caderno rasurado de amor, de amar demais. Exorbitante. Fatigado e machucado pelo excesso de sentir. E de não saber amar.

Você me foi tarde fria. Fechei os olhos por dias e noites e me escondi da certeza que te sentia, e por deus, queria te sentir. Mas só eu sei como tive medo de receber-te, aceitar-de. Mais, mais ainda. Tive medo de me permitir sentir por saber que seria exatamente isso: me perder de mim. Ir construindo um eu aos seus encantos, aos seus olhos, e me abandonar. Larguei-me em tantas esquinas apenas para poder acompanhar suas ruas.

E agora? Porra, agora me escoro num canto escuro da minha casa. Do meu eu. Agora durmo na sala porque o travesseiro ainda tem seu cheiro. Me debruço nas janelas pra tentar encontrar a tua paz. Mas não está lá. Não está nos cafés frios esquecido em cima da mesa. A paz, cacete, não está nos restos dos seus cigarros, nem nas bebidas amargas. Não está nas roupas esquecidas, nos livros interminados. Nem nas lembranças. Aliás, menos ainda nas lembranças. Essas estão carregadas de ausências tuas, pesadas de amargura. Você não está na casa, em mim, não está onde eu procuro.

Talvez você esteja, ainda que pouco, nessa letra corrida, na minha caligrafia ilegível, na minha ânsia por escrever. Talvez você esteja no papel velho, amassado. Talvez.

Talvez essa seja uma carta dolorida que pesará na mesa de centro por dias até ser esquecida. Por deus, se eu te berrasse meus ensejos, você traria de volta minha paz? Pois te suplico em cada linha minha: sua ausência me ensurdece, me cala, me afoga. Sua falta me mata de uma dor que não sei morrer. E não sei viver.

morar-se

Um toque cheio de encantos meus que te faça sentir. Mas qual toque que não se sente? Menina, me rompo os medos e receios a cada entrelaçar de dedos. Me consumo do ensejo, me dilacero em efêmeras vontades. Mas a cada tilintar meu em sua tez, em toques e contornos de seus traços, me permito um pedido, ainda que quieto, sussurrado, que fique. Por deus, menina, fique.

Te recebi de portas e alma abertas. Te abracei no âmago, te fiz moradia mesmo quando morri de medo de sair de casa. Te entrego minhas chaves. Mas te quero como permanência. Venha de malas prontas, sorrisos doces, toques sinceros. Venha como quem fica. Mas não como alguém que vem por não ter onde mais ir. Venha como quem tem todas as estadias, mas sente que aqui os olhos encontram a paz. E, por fim, te peço que aprenda a ler as palavras que não sou capaz de pronunciar. Pois em cada toque quebro um sem fim de barreiras, caio num sem fim de abismos, mas ainda sim te toco. Ainda te teço, desenho. Assim te rabisco na pele: faz daqui moradia.

Tinha uma placa azul, com letras brancas, delicada mas presente, que dizia “pede-se a fineza de não cortar as flores”. A princípio achei graça. Uma graça tola, risonha, delicada. Quem, por deus, cortaria as flores? Rosas e cores e flores e todas doces. Pede-se a fineza. Bonito isso, mas quem seria rude a ponto de despetalar um encanto assim?

Mas a gente despetala, a gente leva pra casa pra ter um toque a mais. E nem é por mal. É que ela, flor tão delicada, encanta tanto, perfuma e modela um tracejar sutil. Me és flor, pequena. Doce. Doce. E quando te entrego perfumes, quase te digo que te bordo em cada pétala. Te perfumo.Te venero. Uma pétala guardada entre páginas de um livro favorito. Tenha a fineza, minha menina, de não cortar as flores.

Agora entendi. Numa compreensão epifânica: pede-se a fineza de não desflorar os amores.

É tempo. Chuva. Temporal.

Andei sorrindo um tanto a mais nesses últimos dias. Ah, pequena, fora doce esse tempo transcorrido. Me deu uma leveza aos dias que nem se te pronunciar. Foram dias de uma calmaria retumbante. Dias nem curtos, nem longos, mas de tempo exato. E te digo que me peguei, por vezes, esboçando um sorriso que há muito não me culminava. Fui tecendo um bem querer, um bem viver. Fora doce, pequena.

Queria ter estendido essa sensação por mais tempo. Queria agora me assegurar nas palavras que ouvi, nos olhos que se esqueceram em mim, queria, por deus, apertar-me contra suas recentes frases ritmadas de afeto e carinho e bem me quer. Me quer? Pois, menina, agora me pego relutante, num sem saber ao certo quais falas são minhas. Sem saber ao certo se os dias ainda correm nesse ritmo, pois aqui dentro de mim o caos é evidente. Foram meus olhos que te viram, mas foi meu eu inteiro que te recobriu. Foi você que, peça a peça, me despiu de mim, de um não saber deixar-me livre. E nesses dias tenho sido tão despretensiosamente liberta. Ainda que veementemente presa a ti.

Me deixei prender. E agora não sei o que faço com os dias um tanto ocos, vagos, soltos. Não sei o que faço sem tua paz, apenas minha agonia solitária, pois agora te sou em meus abandonos. Os risos já não me sustentam. Não são mais dias doces. Acabar é uma fria prerrogativa. É tempo. Chuva. Temporal.

Risos, timbres e tons

Como é que se começa uma despedida? Ou quando é que se começa? Porque nós, menina, já começamos errado. Eu comecei, você não. Comecei invertendo quem sou só pra poder ser exatamente quem você queria que eu fosse. Mostrei meu lado bom. E depois? Fui me permitindo o que me jurei não mais ser. Nunca mais.

Menti minha aflição, meu riso, timbre e tom. Por deus, menina. Menti minhas falas todas só pra falar o que você queria ouvir. Mesmo que seus olhos me desgastem a conquista do afeto, mesmo que sua sinceridade me roube a paz por não me ser o que procuro, ou quem procuro. Ou quem preciso procurar. Ainda assim, me inverto em frágeis omissões do meu eu, e me moldando ao timbre teu, vou errando.

E, ainda assim, eu me cativo entre dedos e toques seus. Ainda assim eu me agarro a esse precisar perder-me entre mentiras. Porque existe uma metade de mim que morre entre afetos e paixões. E existe a outra metade que não sobrevive neles. Por deus, pequena, te almejo apenas, e tão apenas, porque eu sei que não há mais caminho. Nunca houve. Nunca existiu a chance real de darmos certo, pelas mentiras, pelo meu eu todo dilacerado nos seus silêncios. Mas nunca te cobrei respostas. Sequer te fiz perguntas. Perguntar é uma forma sutil de se entregar, e um modo devastador de invadir espaços, intimidades.

Nunca fomos íntimas, menina. Me resguardei em risos contidos, em mentiras forçadas, em abraços frios. Porque você veio e eu queria – deus, como eu queria – que desse certo. E  haveria paz, rima, domingo solitário. Haveria saudade, harmonia, sofridão. Haveria, pequena. Mas te peço perdão, ainda que tenha enganado mais a mim do que a ti. Eu insisti pois me assegurei em não te ter – e apenas isso me faria ficar. Jamais te ter. Ao tempo que te querer de corpo, alma e vísceras, te querer num conforto da sua presença, acabaria com qualquer caminho junto ao teu.

Não sou capaz de aceitar o conforto, a segurança, o caos de alguém. Por isso meus afetos morrem. Meu amor morre. Minha lucidez morre. Mentira. Meu afeto não morre. Ele vira poesia, sofridão. Vira noites em claro e olhos chorosos. Só não vira cabeças recostadas, mãos enlaçadas, não vira o aceitar inócuo dos que amam. O meu afeto se alimenta da solidão.

Então, por fim, descubro que uma despedida nunca é na partida. Ela começa sempre alguns parágrafos antes. Onde ninguém sentiu ainda o sorrateiro adentrar do abandono.

Florescer

Sua flor caiu ao chão. Morrendo despetalada. Em sete pedaços sem perfume. Sua flor caída fez rugir um estardalhar imenso. Cada pétala figurou um sem fim de amores, dores e receios que pesaram no chão nais do que uma alma pode aguentar. Em cima da mesa restaram outras flores que me deste, ainda que, uma a uma, elas têm esse processo de encontro ao chão. Três vezes, quatro, oito, centenas de vezes pois suas flores renascem e morrem na mesa. Em mim. Cem flores mortas e as pétalas te rememoram. Cem quedas diárias, e o perfume que resta é solitário. Ainda que eu tenha me feito moradia nas flores, me juntado a elas no chão frio, costurado suas pétalas e lançando-lhes perfume, e deus sabe quantas noites me mantive nesse ritual patético de salvação inútil, elas continuavam mortas e continuavam morrendo e continuavam. A mesma flor caída e costurada, morta e insistida. A mesma flor morrendo cem vezes de um amor que só eu não quis despetalar.

Meu retrato

Uma flor que se contém numa fresta de sol. Ah, menina, essa janela em que você se debruça sustenta tantas flores e raios de sol e perfumes. Doces. Doces. A flor que, por deus, um dia vai se despetalar agora é de um vivo tão mais agradável, austero, um vivo tão mais vibrante que encanta a casa. E eu que me permito o repouso em solidão, me aflijo ao te observar. Me aflijo ao fazer de ti uma moradia que me amedronta. E por ver em ti um caminho estreito que quero mais não sei se posso percorrer.

Queria uma foto dessa flor. E sua. E da janela. Porque caberiam as 3 na mesma foto de um modo que as 3 não me cabem, pois você anda me transbordando. Queria a foto pois não ando sabendo lidar com a sua presença na casa, sua figura na janela, seu perfume na sala. Queria a foto porque não tô mais sabendo lidar com as janelas ou flores quando você não está. E tem me feito despetalar-me quando me fraquejo em ausências.

Mas eu te diria, menina, que se houver paciência no seu regar da flor, no seu escorar na janela, se puder e quiser ter paciência, eu rejeito a foto e te recebo. Te enceno. Te ensejo no meu retrato.

Eu decoro a janela. Eu rego a flor. Eu me sento nesse sofá dia após dia pra vislumbrar meu afeto. Mas tem que me prometer paciência. Tem que me prometer flores e ventos e uma janela aberta. Tem que me roubar a foto, mas, em troca, me dar a segurança da memória doce. Doce.